Um contributo para<br>o debate sobre a ADSE

Jorge Pires (Membro da Comissão Política)

Nunca se falou tanto do estatuto do regime de Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE) como nos últimos meses, particularmente por parte dos que olham para a ADSE não com o objectivo de encontrar soluções que garantam a sustentabilidade deste subsistema público de saúde, ou por qualquer interesse na melhoria do acesso aos cuidados de saúde para os seus 1,3 milhões de beneficiários, mas apenas com a preocupação de garantir a consolidação da ADSE como instrumento de financiamento dos grupos privados da saúde.

A ADSE não pode servir para desvalorizar o SN

A rapidez com que alguns, nomeadamente a presidente do CDS ou o presidente da Associação de Hospitalização Privada, vêm aplaudir a proposta do Governo relativa à possibilidade de alargamento do número de beneficiários da ADSE e, simultaneamente, exigir que nesse alargamento se considere os trabalhadores do sector privado, confirma que não estão minimamente preocupados com a melhoria da qualidade do serviço prestado pela ADSE e muito menos com os direitos dos trabalhadores do sector privado no acesso à saúde, já que, se assim fosse, não teriam um percurso de afronta sistemática ao Serviço Nacional de Saúde.

As suas intervenções procuram sobretudo atingir um objectivo: aumentar as receitas da ADSE e assim garantirem a transferência de mais dinheiro para o sector privado na saúde, o qual tem crescido exponencialmente nos últimos anos. Uma transferência de meios financeiros que hoje, considerando os vários subsistemas públicos de saúde (ADSE, ADM e SAD), ultrapassa os 500 milhões de euros a que se devem somar os cerca de 400 milhões de euros que só em Meios Complementares de Diagnóstico e Tratamento (MCDT) são transferidos para os privados anualmente, através do regime convencionado, celebrado entre o SNS e os grupos privados.

Uma autêntica «árvore das patacas» para estes grupos que, assim, não só têm garantido os clientes como o financiamento. Em 2008, o ex-ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, deu uma importante contribuição para o acesso dos privados aos dinheiros da ADSE quando celebrou um importante acordo com um grande grupo privado, objectivo que teve novo impulso em 2015, com Passos Coelho e Carlos Liberato, director-geral de então, a defenderem a alteração do paradigma existente e o estudo do alargamento da base de beneficiários.

O que é importante hoje debater é saber se a ADSE deve manter o objectivo para o qual foi criada em 1963 ou se, a pretexto da garantia da sua sustentabilidade, é utilizada para desvalorizar o SNS no quadro de uma estratégia há muito em curso, que tem o objectivo de instalar em Portugal um sistema de saúde com duas componentes: uma centrada na prestação privada de cuidados de saúde, pagos através de seguros de saúde privados (para quem tiver dinheiro para comprar esses seguros); e outra, centrada num serviço público desvalorizado, que apenas tem como função garantir um conjunto mínimo de cuidados dirigidos aos que não têm os meios financeiros para adquirir os seguros.

Universal, geral e gratuito

Se tivermos em conta que o número de beneficiários da ADSE e dos outros subsistemas públicos é superior a 1,5 milhões de beneficiários e que mais de 2,2 milhões de portugueses já têm hoje seguro de saúde, fica mais claro o porquê das nossas preocupações sobre o futuro da ADSE e do SNS, sabendo-se que estão encomendados pelo Ministério da Saúde dois estudos – um à Entidade Reguladora da Saúde e outro a um grupo de trabalho nomeado pelo Ministério da Saúde – com o objectivo de apresentarem ao Ministério «medidas de reformulação do sistema, nas vertentes jurídica, institucional, estatutária e financeira», transitando a ADSE para um modelo de associativismo, leia-se, associação mutualista de direito privado.

A luta do PCP ao longo de anos, particularmente desde 1979 (ano da criação do SNS), é para que em Portugal o Serviço Nacional de Saúde universal, geral e gratuito dê respostas atempadas, com qualidade e em segurança, através de uma rede de serviços de proximidade que tenha em conta as necessidades da população portuguesa, sem que para tal seja necessário, em complemento, recorrer a um seguro de saúde. Mas será que hoje, de acordo com a realidade concreta do SNS, existe alguma contradição entre o defender a existência da ADSE e, se possível, melhorar o seu desempenho e ter como um imperativo nacional a luta contra qualquer tentativa de desvalorização ou mesmo aniquilação do SNS?

Não! A contradição existirá certamente, caso não seja perceptível aos beneficiários da ADSE que à destruição do SNS corresponderá inquestionavelmente a destruição do direito constitucional do acesso à saúde em condições de igualdade, independentemente das condições sócio-económicas de cada português e que qualquer perspectiva de que se pode garantir esse direito através de um seguro de saúde, ou qualquer sistema equiparado, é uma ilusão que noutros países há muito foi esclarecida.

 



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