Um contributo para<br>o debate sobre a ADSE
Nunca se falou tanto do estatuto do regime de Assistência na Doença aos Servidores do Estado (ADSE) como nos últimos meses, particularmente por parte dos que olham para a ADSE não com o objectivo de encontrar soluções que garantam a sustentabilidade deste subsistema público de saúde, ou por qualquer interesse na melhoria do acesso aos cuidados de saúde para os seus 1,3 milhões de beneficiários, mas apenas com a preocupação de garantir a consolidação da ADSE como instrumento de financiamento dos grupos privados da saúde.
A ADSE não pode servir para desvalorizar o SN
A rapidez com que alguns, nomeadamente a presidente do CDS ou o presidente da Associação de Hospitalização Privada, vêm aplaudir a proposta do Governo relativa à possibilidade de alargamento do número de beneficiários da ADSE e, simultaneamente, exigir que nesse alargamento se considere os trabalhadores do sector privado, confirma que não estão minimamente preocupados com a melhoria da qualidade do serviço prestado pela ADSE e muito menos com os direitos dos trabalhadores do sector privado no acesso à saúde, já que, se assim fosse, não teriam um percurso de afronta sistemática ao Serviço Nacional de Saúde.
As suas intervenções procuram sobretudo atingir um objectivo: aumentar as receitas da ADSE e assim garantirem a transferência de mais dinheiro para o sector privado na saúde, o qual tem crescido exponencialmente nos últimos anos. Uma transferência de meios financeiros que hoje, considerando os vários subsistemas públicos de saúde (ADSE, ADM e SAD), ultrapassa os 500 milhões de euros a que se devem somar os cerca de 400 milhões de euros que só em Meios Complementares de Diagnóstico e Tratamento (MCDT) são transferidos para os privados anualmente, através do regime convencionado, celebrado entre o SNS e os grupos privados.
Uma autêntica «árvore das patacas» para estes grupos que, assim, não só têm garantido os clientes como o financiamento. Em 2008, o ex-ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, deu uma importante contribuição para o acesso dos privados aos dinheiros da ADSE quando celebrou um importante acordo com um grande grupo privado, objectivo que teve novo impulso em 2015, com Passos Coelho e Carlos Liberato, director-geral de então, a defenderem a alteração do paradigma existente e o estudo do alargamento da base de beneficiários.
O que é importante hoje debater é saber se a ADSE deve manter o objectivo para o qual foi criada em 1963 ou se, a pretexto da garantia da sua sustentabilidade, é utilizada para desvalorizar o SNS no quadro de uma estratégia há muito em curso, que tem o objectivo de instalar em Portugal um sistema de saúde com duas componentes: uma centrada na prestação privada de cuidados de saúde, pagos através de seguros de saúde privados (para quem tiver dinheiro para comprar esses seguros); e outra, centrada num serviço público desvalorizado, que apenas tem como função garantir um conjunto mínimo de cuidados dirigidos aos que não têm os meios financeiros para adquirir os seguros.
Universal, geral e gratuito
Se tivermos em conta que o número de beneficiários da ADSE e dos outros subsistemas públicos é superior a 1,5 milhões de beneficiários e que mais de 2,2 milhões de portugueses já têm hoje seguro de saúde, fica mais claro o porquê das nossas preocupações sobre o futuro da ADSE e do SNS, sabendo-se que estão encomendados pelo Ministério da Saúde dois estudos – um à Entidade Reguladora da Saúde e outro a um grupo de trabalho nomeado pelo Ministério da Saúde – com o objectivo de apresentarem ao Ministério «medidas de reformulação do sistema, nas vertentes jurídica, institucional, estatutária e financeira», transitando a ADSE para um modelo de associativismo, leia-se, associação mutualista de direito privado.
A luta do PCP ao longo de anos, particularmente desde 1979 (ano da criação do SNS), é para que em Portugal o Serviço Nacional de Saúde universal, geral e gratuito dê respostas atempadas, com qualidade e em segurança, através de uma rede de serviços de proximidade que tenha em conta as necessidades da população portuguesa, sem que para tal seja necessário, em complemento, recorrer a um seguro de saúde. Mas será que hoje, de acordo com a realidade concreta do SNS, existe alguma contradição entre o defender a existência da ADSE e, se possível, melhorar o seu desempenho e ter como um imperativo nacional a luta contra qualquer tentativa de desvalorização ou mesmo aniquilação do SNS?
Não! A contradição existirá certamente, caso não seja perceptível aos beneficiários da ADSE que à destruição do SNS corresponderá inquestionavelmente a destruição do direito constitucional do acesso à saúde em condições de igualdade, independentemente das condições sócio-económicas de cada português e que qualquer perspectiva de que se pode garantir esse direito através de um seguro de saúde, ou qualquer sistema equiparado, é uma ilusão que noutros países há muito foi esclarecida.